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Somos também Assassinos

  • Foto do escritor: José Odincs
    José Odincs
  • 2 de fev. de 2022
  • 4 min de leitura


 

O título deste texto pode parecer pesado demais para muitos, mas a ideia é justamente esta, é preciso tirar todos nem que seja um pouco de sua zona de conforto, para que daí possamos vislumbrar a queda das máscaras que tanto escondem nossos rostos. Estamos fingindo viver bem num ambiente de caos, chegamos até a pensar que existe alguma normalidade, já que todos continuam seguindo "tranquilamente" como se nada estivesse errado. Mas aqui e acolá acontecimentos confrontam esta pretensa “normalidade”, somos sacudidos e interrogados por uma realidade a qual é impossível escapar.

Mesmo quando muitos buscam “seguir suas vidas” negando qualquer coisa que não lhes agrade, estamos imersos em tempos sombrios que não podem ser apagados como passe de mágica, nossa época é de total instabilidade política, econômica e social. A crise sanitária a qual estamos atravessando nos colocou diante de questões cruciais, dentre estas, uma que precisa ser problematizada é a do individualismo extremado. Não quero tratar aqui de um individualismo banal, aquele que vemos nas escolas quando o aluno quer fazer algum trabalho de forma individualizada, ou mesmo da pessoa que prefere viver só. Quero tratar aqui de algo mais profundo, um individualismo que se firma no apagamento do outro ou de realidades que não a nossa.

Para pensar um pouco sobre essa questão, irei dialogar de forma breve com um autor que muitas vezes é acusado de promover com seu pensamento um individualismo extremado, o filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 – 1900). Nietzsche tem um pensamento individualista, mas seu pensamento é focado no reconhecimento das forças que nos constituem enquanto indivíduos relacionais e de poder. Nietzsche no seu livro A Gaia Ciência, anuncia no aforisma 125 a “morte de Deus”. E é desta passagem que procurarei pensar um pouco das implicações deste individualismo.. No aforisma temos a fala do “homem louco” que nos diz:


Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? — E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? — gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos — vocês e eu. Somos todos seus assassinos![...]


É preciso contextualizar um pouco este anúncio. Nietzsche entende que o conceito de “Deus” é entendido como uma ideia reguladora, um valor que estruturaria todos os demais valores, sendo o sentido último da existência. O que está em jogo aqui é que com o anúncio da “morte de Deus”, a crença em valores transcendentes e toda a estrutura valorativa derivada deste conceito morrem também, deixando este de ser um marco regulador, e não tendo assim mais nenhum âmbito superior que determine algo como um “valor supremo”, mas o contrário, a única realidade possível é a da vida sem que esta tenha nenhum valor intrínseco e muito menos um sentido último.

Feito esta contextualização, podem me perguntar, mas o que queres com isso? E a resposta é simples, dizer que não só matamos “Deus” como é sugerido no aforisma, mas que continuamos assassinos, não mais de um “valor supremo”, mas também matamos nossos sentimentos, nos tornando assassinos ainda mais cruéis porque agora assassinamos também os outros sem que isso nos gere culpa. Quando Nietzsche com o anúncio da “morte de Deus” nos aponta para o niilismo, temos no vazio de valores uma mudança radical na forma que lidamos com a realidade, já que esta é destituída de valor transcendente e o que resta em certo sentido, é uma visão individualista de mundo.

É preciso então entender este individualismo nietzschiano, porque ele não “assassina” o outro como uma não realidade, como fazemos hoje. Da mesma forma que ele não nega nossa realidade pulsional e os sentimentos que afloram em nós. O niilismo nesta perspectiva é uma ponte, que seria necessário no primeiro momento, porque é em seu vazio que se abre a possibilidade de uma nova aurora, um movimento em direção ao auto-reconhecimento de si, já que neste novo alvorecer não teríamos uma vida determinada por valores que só pesam e que impedem o movimento pleno de expansão da vida. O que ocorreria com a “morte de Deus” para Nietzsche, seria a possibilidade da superação de toda uma tradição que pensava o homem e a vida de forma secundária.

Só que hoje não vemos nenhum novo alvorecer, apenas um individualismo tão brutal que o homem transformou ele mesmo num autômato, destituído de sentimentos como a empatia para qualquer realidade alheia à sua, nos reduzindo a não mais do que às cinzas de nós mesmos. E o que me faz crer nisso são notícias como a da morte do fotógrafo suíço René Robert (1936 – 2022), que morreu após sofrer uma queda e passar nove horas no mesmo lugar caído, sem que as pessoas que ali passavam tivessem a mínima reação de pelo menos solicitar uma ambulância. Ao fim foi encontrado morto por hipotermia, sendo socorrido por apenas uma pessoa, um homem em situação de rua. Seu amigo, o jornalista Michel Mompontent falou que ele foi “assassinado pela indiferença” e que “este fim de vida trágico e repugnante nos ensina algo sobre nós mesmos”. Realmente tudo muito assustador e é preciso ter a convicção que somos também assassinos, assassinamos milhares com esta mesma indiferença.

O assassinato de “Deus” que deveria ser o trampolim para o “torna-te quem tu és“, onde o individuo ao perceber a multiplicidade de perspectivas se reconheceria como unidade dentro deste todo, ocorreu o contrário, criou um individuo que assassinou não só a “realidade” transcendente, mas qualquer percepção de realidade que importe para além da dele mesmo. Penso que este individualismo tem estruturado um dos aspectos da tragédia de nossa sociedade, se vamos superá-lo ou mesmo nos afundar ainda mais nesta lama, só o tempo dirá.


Referências:


NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. — São Paulo: Companhia das

Letras, 2012





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