Ontem à noite assistimos ao argentino Puan, lançado no final do ano passado (2023) e dirigido pelos jovens Maria Alché e Benjamin Naishtat. O enredo é uma comédia dramática que gira em torno de Marcelo Pena, um professor universitário de filosofia desvalorizado intelectual e academicamente (que novidade), que após a morte repentina do seu mentor e catedrático que auxiliava como adjunto, se vê na encruzilhada de tomar as rédeas do seu próprio destino, ou permanecer na eterna busca pela realização dos sonhos dos outros.
Para muito além dos clichês acerca do acadêmico de esquerda e alunos clássicos das humanidades estereotipados e ridicularizados em certa medida na película, Puan é uma obra fantástica que problematiza o tipo de filosofia (re)produzida pelo acadêmico que vive na periferia do mundo. Acredito que seja fundamental e bastante urgente pensar se a fórmula europeia e colonizadora ainda nos cabe. Mais que isso: é urgente pensar se ela nos coube em algum momento. Marcelo, professor de filosofia política, ministra um curso sobre Rousseau. Em determinado momento da narrativa um aluno mostra a ele um livro do revolucionário peruano José Carlos Mariátegui. Marcelo observa o livro, reconhece os méritos na interpretação de Mariátegui acerca da obra Rousseauniana, mas ignora o aluno e seu livro por não ter tempo para aquilo.. É a dicotomia antagônica do intelectual que afirma as bases epistemológicas de um passado que nunca foi o seu, em detrimento de uma realidade que sempre foi a sua. O ponto de reflexão não se encontra em negar a tradição, afinal, como diria Hegel: o pensamento filosófico só é possível dentro da história da filosofia. A grande questão aqui é justamente questionar que as bases epistemológicas utilizadas por Hegel para proferir tal pensamento não nos serve. Deve-se sim questionar o status quo a partir de uma tradição, mas que essa tradição seja nossa e compreenda a realidade a partir da nossa perspectiva. Hegel não serve para pensar a periferia brasileira, mas o pensamento hegeliano adaptado para a construção de ferramentas epistemológicas pode ser bastante útil no entendimento da realidade periférica brasileira.
Outro personagem bastante interessante é Rafael Sujarchuk, interpretado pelo sempre maravilhoso Leonardo Sbaraglia. Rafael é um filósofo argentino que passou boa parte de sua vida pesquisando e lecionando na Alemanha. Como um “bom” acadêmico, ele traz consigo todos os vícios e pré-conceitos europeus dentro da sua mala de volta à Argentina. Rafael acredita que o alemão é uma espécie de língua superior, que o imperativo categórico cola por aqui, e que realmente é possível resolver tudo no diálogo. Só que a materialidade do cassetete do policial estalando nas costas dos professores que lutam por dignidade de classe, faz Rafael entender que por essas bandas a única aufklärung possível acontece na reivindicação dos direitos do povo.
Puan é um filme divertido, mas com fortes camadas críticas ao ato de filosofar a américa latina. Definitivamente não é possível arrotar alemão quando o nosso prato está ausente de comida. O filme está disponível no Prime Video.
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