shelley, filosofia e angústia
- José Odincs
- 23 de nov. de 2022
- 4 min de leitura

pedi-vos eu, criador, que do meu barro
me moldásseis homem? solicitei-vos eu
que me promovêsseis das trevas?
John milton, paradise lost
eu já quis morrer. não fui a primeira e não serei a última a pensar assim. a me sentir como uma criatura deformada e isolada. um monstro como frankenstein. me vi nele inúmeras vezes durante a leitura d'O Prometeu Moderno, e me vi ainda mais em Mary shelley, autora da obra, ainda que não corresponda a uma fração da mulher que ela foi. se o gênero feminino corresponde a provações, danos e abusos hoje, o século dezenove era substancialmente mais cruel. após crescer com a ausência da mãe e o alheamento do pai, dentro de uma inglaterra que aristocratizava sua burguesia, Mary impôs seu lugar não só de independência do lar, mas de intelectualidade ao lado do parceiro, e sua obra pode ser considerada a frente do seu tempo na ciência, prevendo o advento dos desfibriladores, da literatura, iniciando o movimento da ficção científica, e da filosofia, dotada de um existencialismo e niilismo singular, incomparável até os dias atuais, e a ser destrinchado com mais apreço aos parágrafos que sucedem esse escrito.
cartas de suicídio possuam certo aspecto surreal, hiperfísico no plano fímbrio da existência. dos que estão aqui, mas não querem estar. carregadas de uma carga emocional densa, nua, crua e revelam aos plenos e ativos que esmorecimentos acometem os corações dos transtornados. palavras transcorridas no papel, por vezes, significam mais que o próprio falecimento. e acredito na existência de um suicídio artístico, no qual a partir da criação de uma persona e seus signos, tem-se a consumação de um ato, de uma depressão e de uma despedida. de uma mulher e de seu desencanto com o mundo. acima de tudo, um humano e seu desencanto com deus.
Victor frankenstein, guiado pela razão e pela ciência, faz um experimento: trazer vida ao inanimado. mais forte. mais rápido. melhor. transumanista. todavia, a criatura não possui propósito além de existir ou funcionar. sua vida que procede o momento que abre os olhos é um grande indeterminado. o nascer é um dos pontos altos da leitura, no qual a criatura conhece seus próprios sentidos, o frio e a fome. ele descobre que sua aparência é bizarra e mutilada, e a sociedade o apresenta ao ódio a à violência. o "monstro" então, odeia estar vivo.
viver com depressão é uma experiência e tanto. posso me identificar em uma passagem do livro que diz "de que material era eu feito que podia resistir assim a tantos choques que, como o girar de uma roda, renovavam sem cessar a tortura?" estive grande parte da minha vida enfrentando infindáveis torturas. suportando mais peso do que eu era capaz de carregar e me esgotando mais e mais, dia após dia. passei mais tempo querendo não estar viva do que querendo viver, de fato. mas o alongamento desses sentimentos, durante meses e anos e o isolamento que a doença me proporcionou culminaram no surgimento de outro sentimento: a ira. por que eu havia sido abandonada? por que eu estava condenada a sofrer?
quando frankenstein odeia a vida, ele odeia quem o colocou no mundo e o condenou à viver. rejeitado pelos humanos, renegado pelo pai e sob a ausência de qualquer juízo de valor, ele vaga pela terra em busca de amor e inspirando medo. se sente solitário e atraído pela morte. vejo na narrativa a carta de suicídio de Mary, que não se atrela à sua ida, mas carrega tanta emoção quanto. acho que a entendo mais do que gostaria. deus está morto. não como aparece na gaia ciência de Nietzsche, no seu sentido moral e social. deus morre diariamente ao conferir o inferno aos seus filhos, e se afastar longe demais para escutar seus prantos.
"maldito dia em que recebi a vida! maldito criador!"
alguns anos depois quando Nietzsche em a Origem da Tragédia escreve o sábio de sileno a falar "o melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, ser nada. e o melhor em segundo lugar, para ti, é morrer rápido", ele fala ao rei midas, mas também fala para a criatura reanimada e para mim. ele fala sobre uma vida e sua ausência de significado. sobre uma divindade que nos deixou sozinhos, e sobre como vemos sendo sozinhos desde então (sempre). sobre se resguardar diante da dor e da náusea. se resguardar do sofrimento é se resguardar da vida.
e alguns anos depois de Nietzsche vem Sartre e seu existencialismo. e vejo seu trabalho intrínseco ao de shelley em duas vertentes: a do "monstro" e a de Victor. quando Jean-paul explicita que "a existência precede a essência", ele quer dizer que não há um determinismo celestial que coloque desígnio em existir. a presença de uma finalidade é tão e somente aquela que nós mesmos conferimos em viver. frankenstein é a maior representação do propósito que não temos. já o Victor reflete a consequência dessa afirmação: somos o resultado de nossas liberdades e o resultado das nossas escolhas. o cientista determina um objetivo e é tomado pelas duras consequências de suas falhas. sua criação não é só errônea, mas criminosa, violenta, e se volta contra si e contra sua família. Victor se afunda também em melancolia e as duas personagens cultivam grande ódio entre si. juram se matar mas desejam desesperadamente morrer.
este livro significou muito para mim, em todas suas páginas e palavras. foi uma grande jornada, em outra época, em outros cenários, mas também uma jornada para dentro de mim mesma. boa literatura e boa filosofia servem a esse ofício. boas provocações movem boas pessoas.
Texto de: Anna Letícia
E-mail: annaleticia4c@gmail.com
ความคิดเห็น