Acabamos de assistir a comédia estadunidense Ficção Americana, e é muito bom encontrar um filme que está em sintonia com o seu atual pensamento de crítica acerca das dinâmicas raciais. O filme gira em torno de Thelonious “Monk” Ellison (eu amei esse nome, por dois motivos bastante óbvios: faz referência ao grande virtuose do jazz e ao escritor de ficção científica, ficção especulativa, quadrinhos, etc, etc, etc.. Harlan Ellison). Monk, interpretado pelo já conhecidíssimo Jeffrey Wright, é um professor e escritor completamente frustrado com a esteriotipação dos corpos negros promovido tanto pelo mercado editorial quanto pela expectativa das pessoas brancas de terem a sua disposição pessoas pretas que seguem o “manual da negrura”, e é exatamente esse o ponto que gostaria de me debruçar.
Como havia dito no início, o filme de estreia do diretor Cord Jefferson (que puta estreia) tem uma profunda camada de intersecção com minhas atuais reflexões acerca das dinâmicas que giram em torno da racialização de corpos pretos. O antropólogo congolês/brasileiro, professor emérito da USP e uma das principais referências no mundo sobre o conceito de Negritude, Kabengele Munanga, escreve em sua canônica obra “Negritude: usos e sentido”, que “Se historicamente a negritude é, sem dúvida, uma reação racial negra a uma agressão racial branca, não poderíamos entendê-la e cercá-la sem aproximá-la do racismo do qual é consequência e resultado” (MUNANGA, 2009, p.15). O problema da definição conceitual de Munanga se encontra justamente na palavra “reação”, uma reação só existe porque algo o afeta negativamente, neste caso “(...) a agressão racial branca”. Se a negritude só existe a partir de uma reação ao racismo, consequentemente a nossa identidade acaba se reduzindo constantemente às expectativas da branquitude, logo, quem determina aquilo que eu sou é o branco e não a minha abertura às possibilidades de ser qualquer coisa que eu queira, porque diuturnamente estarei reagindo a violência racial. Acerca deste assunto, recomendo a leitura de Negritude sem Identidade, de Érico Andrade, professor do departamento de filosofia da UFPE.
A constante revolta de Monk durante o enredo à toda estereotipação do negro estadunidense reduzindo-o apenas a criminalidade, filho de mãe solo, rapper, usuário de drogas, praticante de religiões de matrizes africanas, etc.. reflete uma expectativa universal do que deveria ser a pessoa preta, e não do que ela realmente pode ser e em boa parte dos casos do que ela já é. Porra, eu não sei vocês, mas já estou mais do que cansado de ter a minha identidade reduzida a essas caracteristicas minusculas do que é historicamente a negritude. E é nesse ponto que o filme traz, através de um humor ácido, mas bastante necessário, a discussão sobre o quanto isso é violento com as pessoas pretas. Ter registrado desde o momento do meu nascimento na minha camada epidérmica todo o meu futuro, é definitivamente algo muito doloroso. Pior, sempre que se consegue romper esse constrangimento racial imposto pela branquitude, você é instantaneamente tratado como uma espécie de aberração, afinal, “como pode ser preto e entender de cultura européia?”, “Como pode ser preto e não falar gírias?”, “Como pode ser preto e ter ensino superior?”. O rasgo epidérmico que constrange a minha existência não pode ser o único fator que determina a minha identidade.
Sueli Carneiro vai dizer em “Dispositivo de racialidade”, que
O negro chega antes da pessoa, o negro chega antes do indivíduo, o negro chega antes do profissional, o negro chega antes do gênero, o negro chega antes do título universitário, o negro chega antes da riqueza. Todas essas dimensões do indivíduo negro têm que ser resgatadas a posteriori, isto é, depois da averiguação, como convém aos suspeitos a priori. E mesmo após a averiguação ele será submetido a diferentes testes para provar que seja algo além do que é um negro. (CARNEIRO, 2023, p. 130)
A denuncia de Sueli é muito grave e pode colocar muitos em uma situação de desconforto dentro da sua condição de privilégio. Como diz o personagem Arthur, interpretado pelo excelente John Ortiz:“Os brancos acham que querem a verdade, mas, na verdade, não querem. Só querem se sentir inocentes.”. O que fica subentendido da fala de Arthur é “inocentes pelo o quê?”, a resposta é bem mais óbvia do que parece: inocentes pelo maior crime cometido contra a humanidade e que é renovado todos os dias, seja de maneira efetiva através do extermínio das pessoas pretas cometido diuturnamente pelo braço armado da burguesia, ou seja, a polícia. Ou, por esse constrangimento gerado pela minha negrura para com a branquitude, de que só posso existir em reação a sua devastadora violência. Eu sou muito mais do que a expectativa gerada pela cor da minha pele, é esse o debate que Ficção Americana quer despertar na própria indústria de Hollywood, que apesar de lucrar com os nossos corpos e as nossas histórias, pouco quis nos ouvir com o passar das épocas.
Ficção Americana está disponível no Prime Video, assistam. Garanto que não vão se arrepender. Aaaaaah, antes que eu esqueça.. vejam o filme todo e não engulam o papo de pseudo comediantes burros que falam em “crítica à lacração e cultura wolk”, seja lá o que for essa merda.
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