Resenha: Regresso à Nemêsis em tempos de pandemia: um diálogo com Philip Roth
- Jefferson Silva - E-mail: jefferson5684@gmail.com
- 22 de fev. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 23 de fev. de 2021
Em 2010, Philip Roth resolve escrever seu último romance, Nêmesis. O tema: uma epidemia de poliomielite em 1944 nos Estados Unidos e suas consequências existenciais a partir da visão de um jovem professor de educação física, Bucky Cantor. Em 2018 Roth morre sem ver sua última e talvez maior obra sendo esfregada nas nossas caras em meio à outra crise mundial de saúde.
Hoje, vivemos uma pandemia de dimensões ainda mais fatais e catastróficas quanto à de pólio relatada por Philip. O ponto é que a morte nos faz regressar a condição de fragilidade humana. Harold Bloom costumava dizer que Shakespeare era o menos redutor entre os escritores, pois por mais canalhas que seus personagens se mostrassem eles nunca se transformavam em monstros, pelo contrário, continuavam sendo humanos. Eu diria que Roth partilhava dessa característica shakespeariana, mas enquanto o escritor inglês se empenhava em nos mostrar que é justamente por sermos humanos que somos capazes das mais inimagináveis atrocidades, o velho escritor americano nos mostrou que quanto mais humanos mais frágeis somos, principalmente quando nos deparamos com nossa insignificância contingente. Bucky Cantor é pego desde o primeiro capítulo pela impotência de se lutar contra um inimigo invisível que aniquilava a mais indefesa parte do ser humano, as crianças.
Dispensado pelo exército nos últimos anos da segunda guerra mundial, o sr. Cantor se torna instrutor de esportes do pátio da escola Chancellor em Newark, Nova Jersey, que propositalmente também era a cidade natal do autor do livro. Acometido de um problema de visão grave o bastante para tirá-lo da guerra, Bucky passa os seus dias entre o martírio de se considerar insuficiente para defender seu próprio país do inimigo externo e completamente palpável e visível, mas também torturado pela incapacidade de combater outro inimigo, este completamente intangível e invisível, o vírus da poliomielite. Vendo a deterioração e a morte consumindo seus jovens alunos, um por um, de forma lenta ou simplesmente em um piscar de olhos o fez perder a fé em si mesmo e em Deus.
Bucky Cantor é a representação do indivíduo completamente vulnerável a dor e empático a condição daqueles que o rodeiam. Ele mostra que basta ser humano para saber que apenas dentro da coletividade que nossa espécie pode ser salva, mas você nunca conseguirá salvar alguém que não deseja ser salvo. Bucky nunca optou pela salvação e mesmo na fuga quando resolve partir para o acampamento de férias em Indian Hill, onde fora oferecido a ele o cargo de instrutor de esportes, ele soube que a sua condição não residia no escapismo, mas sim na resignação. O Deus que o havia dado a boa vida não fora tão generoso com as crianças do pátio da Chancellor. Neste sentido, Bucky reserva até os seus últimos dias a divisão da raiva de si mesmo e do Deus que condena por ser humano e culpado. A questão é que Deus existia e tinha o sadismo de escolher entre o homem que iria combater na Europa e a criança que ficaria paralítica em Newark. Mas, assim como o próprio narrador fala “Algumas pessoas têm sorte, outras não. Toda biografia é uma questão de chance e, a partir do momento da concepção, a sorte – a tirania da contingência – comanda tudo. Acredito que era a isso que o Sr. Cantor se referia ao condenar o que chamava de Deus.”
A dualidade do homem de físico invejável, um atleta privado do combate, mas que se encontra disposto à vulnerabilidade do inimigo volátil. Uma espécie de Hércules Quasimodo de Euclides da Cunha moldado na escrita de guerra. O Semideus que amarga à descoberta de ser metade homem, quando sempre quis ser completamente deus.
Por fim, Philip Roth nos concebe a irrevogável miséria de ser humano, incapaz, obsoleto e completamente impotente diante de um inimigo que o único objetivo é de nos aniquilar, seja ele visível ou não. Nêmesis é a deusa grega do destino, do equilíbrio e da vingança divina, tudo faz sentido quando no começo já residia o final. Assim, Roth nos mostrou que ninguém precisa ser complexo para ser profundo, uma vastidão de conhecimento pode sair de algo extremamente simples. Talvez esse seja um dos motivos de tantas brigas com Harold Bloom (citado no início do texto), que inclusive acabou discursando à beira do caixão de Philip, neste quesito Bloom acabou se entregando a derrota. Ele foi o total avesso do sonho americano, por isso foi tão odiado pela crítica de seu país por um bom tempo. Um senhor de idade que escrevia sobre sexo, veja só, que coisa repugnante. Repugnante de verdade é negar a si mesmo em detrimento do que outras pessoas podem pensar. Philip Roth se afirmou até o último dia de sua vida. Até posso imaginar o que ele possivelmente teria falado a primeira pessoa que o interrogou acerca de sua aposentadoria da escrita “Foda-se, vocês nunca me quiseram de verdade!”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS
ROTH, Philip. Nêmesis.Trad. Jorio Dauster. São Paulo. Companhia das Letras. 2011
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