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Gravidade Zero

  • Jefferson Silva - E-mail: jefferson5684@gmail.com
  • 8 de dez. de 2023
  • 4 min de leitura

Eu tenho a impressão que os artistas podem ser subdivididos - grosso modo - em pelo menos três categorias essenciais: gênios, mestres e diluidores. Os gênios são revolucionários, tipos genuínos de indivíduos que nascem com um destino: criar. O gênio é uma condição de autoconstrangimento que impulsiona os eleitos a criar, a serem extraordinários. Me parece que este tipo nasce a cada século, ou até mesmo demora muito mais tempo para existir. Uma vez uma pessoa me questionou por quê ela não conseguia ser “livre” como Leonard Cohen, respirei fundo e respondi: “Porque você é comum! Porque nós somos comuns e medíocres!”, é triste, mas é o que há.. Em segundo lugar, temos os mestres, esses carregam em si uma particularidade que muitos gênios não têm: os mestres são professores. Eles absorvem a monstruosidade criadora dos gênios e tornam aquilo tudo palatável aos comuns. Ser mestre é tão complicado quanto ser genial, com o déficit do constrangimento. Por último, temos os diluidores, que também se subdividem em bons e ruins, mas gostaria de me deter apenas aos bons. Este texto não tem o direito de falar sobre algo ruim, hoje não. Os bons diluidores são aqueles que ouviram os gênios, aprenderam com os mestres, e sem o constrangimento criativo, fizeram algo diferente. Os diluidores ruminam a complexidade e entregam para as massas. Hoje vou falar de um gênio.


Acabamos de concluir os três episódios de Zero Gravity, série documental que diz acerca da vida e carreira do revolucionário saxofonista de jazz, Wayne Shorter. Não irei apresentar Wayne ou sua obra, porque creio que seja muito clichê falar sobre a carreira irretocável de um dos maiores nomes da música universal que nos deixou em março deste anos, também porque acredito que o filme fez isso muito bem. Gostaria de falar sobre os sentimentos que a obra da diretora Dorsay Alavi produziram em mim. Assim como Wayne, fui uma criança negra de origem periférica que carregará até o fim a camada epidérmica (e não apenas ela), que determina a minha posição social. Wayne sofreu na pele a segregação social nos EUA, eu sinto na minha a segregação ideológica no Brasil do século XXI. 


Desde o início, Wayne entendeu bem que jazz não é apenas um estilo musical, jazz é um posicionamento político frente ao racismo. Racismo é uma disputa entre quem tem e quem não tem o poder. Entre quem vive e quem morre. Entre quem come e quem não come. Entre quem tem direitos e quem só tem deveres.. Eu poderia passar a vida listando definições acerca das dinâmicas raciais, mas, como costumo dizer: uma dor só é legitimamente compreendida por quem já a sentiu. A dor do racismo é pedagógica, porque te ensina, geralmente em público, qual a sua posição dentro da dinâmica.. Wayne sentiu a dor, digeriu e pariu para o mundo o totalmente novo, que dói, mas também reconforta corações dilacerados. Como um gênio que foi, Wayne escrevia músicas que mais pareciam um quadro de Basquiat, violento.. Mas quando assimiladas, nos lembraram uma película argentina que não queremos que acabe.


O filme mostra que Wayne e sua música evoluíram até chegar ao ponto de habitar uma camada etérea da pretensa realidade suprassensível. O jazz clássico das big bands não existe mais, com o passar dos tempos esse gênero musical historicamente marginalizado passou por processos de higienização e comercialização brutais, a tal ponto de não se conectar mais com a realidade de quem o criou: os pretos. Hoje em dia existem dois caminhos muito bem definidos para o jazz: o primeiro é o regresso às ruas, ao povo, a sua verdadeira casa. Para conseguir concretizar esse caminho, o jazz se uniu à cultura hip hop, se tornando praticamente o seu 5º elemento. O segundo caminho foi dado por Wayne, este é o norte do filme: a gravidade zero. Historicamente o que definiu os padrões do conceito de negritude foi justamente a perspectiva de reagir a violência racial afirmando-se enquanto preto, darei um exemplo: usa-se black power, dreadlocks, roupas comuns na periferia, tatuagens que remetem a cultura negra e ao continente africano, etc.. para afirmar uma identidade que foi historicamente negada aos nossos. Qual o problema dessa dinâmica? Quem determina o lugar do preto é o branco, pois é a ele que eu dedico a minha afirmação, lê-se REAÇÃO, e só se reage a quem te constrange. O que Wayne mostra é que o jogo virou, quem dita as regras no jogo da identidade agora é o próprio preto que não “reage” mais ao constrangimento branco que diz o que ele pode ou não pode fazer, ele não assina mais a minha carta de alforria. Ser preto é ser a porra que nós quisermos.


Conclui o terceiro episódio em lágrimas, pois entendi a dor de Wayne, que também é a minha dor. Wayne Shorter foi um saxofonista dos afetos e da criação. É muito bom estar vivo e saber que eu passarei, mas Wayne Shorter será eterno enquanto existirem pretos no mundo.




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