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Platão e o culto à liberdade: a degeneração da democracia

  • Foto do escritor: Wallace Guilherme
    Wallace Guilherme
  • 9 de out. de 2022
  • 4 min de leitura

No Brasil, o ano de 2022 foi marcado por debates pontuais acerca dos limites – ou a falta deles – da liberdade de expressão. Ora, este debate foi impulsionado, em parte, por polêmicas quase sempre envolvendo celebridades da internet. À critério de exemplo, citamos o episódio-chave envolvendo o apresentador Monark, do Flowpodcast, que no dia 7 de fevereiro de 2022, defendeu a existência de um partido nazista legal no país. O supracitado apresentador já é conhecido por suas defesas e partidarismo com o que chama de liberdade de expressão irrestrita: as pessoas não deveriam responder, segundo esta linha, juridicamente, por falas ou discursos, considerando a fala como uma esfera intocável pelo sistema judiciário. Interessante notar que, geralmente, os embates em torno dos limites da liberdade de expressão partem de pressupostos teleológicos, isto é, consideram o fim ou o objetivo da fala proferida. Dessa maneira, argumenta-se, uma piada não pode ser considerada um crime de ódio, difamação, injúria etc., considerando que seu objetivo foi provocar o riso, e não a ofensa propriamente dita. A debilidade e deficiência do argumento são risórias, posto que ejacula completamente o fator ético para fora da problemática, a resumir tudo à uma questão de subjetividade e intenção individuais.

Muito embora A República de Platão (428/427 a.e.c – 347 a.e.c) seja um vasto estudo sobre temas filosóficos diversos (justiça, ética, epistemologia etc), podemos afirmar, sem medo de sermos reducionistas, que o seu tema central gira em torno da difícil educação das almas dos homens e mulheres. De fato, a maioria dos dez livros da obra magna tem caráter pedagógico. O projeto ético-político de Platão, portanto, tem como base uma proposta de ordenação, seja da cidade – o corpo coletivo –, seja das almas – o indivíduo.

No primeiro livro da obra, Platão pretende expor os parâmetros e bases de uma cidade justa com objetivo de desvendar o seu oposto: a cidade injusta. Tais parâmetros permeiam toda a obra platônica e ficam mais claros e expressivos conforme avançamos nos detalhes desta cidade. Desde então é notável o teor pedagógico e didático da obra.

Assim, objetivando encontrar o injusto (ἀδίκου) e opô-lo ao justo (τὸ δίκαιον) (Rep., VIII, 545a), o Ateniense empreende uma investigação acerca das formas de governo possíveis, cujo pano de fundo é a questão sofística levantada por Transímaco, a saber: se a justiça é ou não superior à injustiça. Para tanto, utilizando-se das constituições existentes na sua época, Platão demonstra, em uma escala decadente, a degeneração dos governos até a última e mais baixa instância possível: a tirania (τυραννίς).

O exame que Platão empreende sobre as formas de governo, na leitura que fazemos, nos fornece uma pertinente reflexão sobre a defesa do Monark: de que forma o culto à liberdade pode transformar esta virtude um vício. Nesse texto, pretendemos, através da análise platônica, problematizar a liberdade enquanto bem supremo e, ao mesmo tempo, denunciar o que esta idolatria pode acarretar na cidade.

E quais são as formas de governo? Temos a (I) aristocracia, “muito elogiada forma de governo” de Creta e da Lacedemônia; em segundo, (II) a timocracia ou timarquia, o “governo da ambição”; a (III) oligarquia, “governo em que os defeitos constituem legião”, em cujo rastro segue a (IV) democracia; por fim, (VI) a nobre tirania, “quarta e última doença das cidades” (Rep., VIII, 544c-d). E de que forma se dá a decadência das formas de governar?

A aristocracia, o governo dos melhores, corrompe-se em timocracia, governo dos amantes da honra que “demonstram maior estima à Ginástica [educação física] do que à Música [educação cultural]” (VIII, 548c). Os timocratas, portanto, têm em conta cargos públicos, honrarias e títulos provindos da estima que os outros têm por eles. De fato, esta ambição dos timocratas os fazem recair na oligarquia, “no qual os ricos mandam e os pobres não exercem poder de espécie alguma” (VIII, 550d), que fragmenta a unidade da pólis em duas: ricos e pobres, esfarelando assim o corpo coletivo da cidade. E qual o problema de pautar uma cidade com base nas posses?

Para isto responder, Platão nos sugere que pensemos “se a escolha dos pilotos das naus se firmasse no critério do dinheiro, ficando excluídos os pobres, ainda que fossem conhecedores da arte de navegar” (VIII, 551c); este é o pior defeito da oligarquia. Ambicionando desmedidamente acumular cada vez mais bens materiais, a oligarquia degenera-se na democracia. E qual é a causa da corrupção da democracia?

Platão elenca como característica marcante da democracia a liberdade. Ora, neste regime, “todos são livres e transborda de liberdade o burgo e de franqueza no falar, além de ser permitido a todo mundo fazer o que quiser” (VIII, 557b). O culto à liberdade, na democracia, faz com que se despreze todos os outros bens que a circundam, como se erguessem um ídolo à liberdade e o cercassem para que nenhum outro altar fosse posto ao lado. Assim, a democracia sucumbe graças “à avidez do bem que ela a si mesmo propusera” (Rep., VIII, 562b), isto é, a liberdade. A embriaguez desmedida com o vinho da liberdade, juntamente com a indiferença perante os outros bens, é considerada não só a causa da ruína da democracia, como também um convite à tirania. Dessa maneira, “o excesso de liberdade só pode terminar em excesso de escravidão, assim nos indivíduos como nas comunidades” (VIII, 564a).

Com esta análise, Platão nos mostra que a idolatria de um bem ou virtude específica, a saber, a liberdade, prepara terreno fértil para o surgimento do seu oposto: a tirania, a escravidão. Assim, aqueles que, por culto à liberdade, ignoram a ética, o bom senso, a legalidade, acabam por tornar-se escravizados: da própria liberdade, das palavras e atitudes que florescem delas; por fim, de si mesmos. Outrossim, “é natural, por conseguinte, [...] que a tirania não possa deixar de provir de outra forma de governo que não a democracia, a saber: da mais extrema liberdade nasce a mais completa e selvagem servidão” (VIII, 564a).

Diante disto, ansiamos e solenemente sugerimos que os embates em torno da liberdade e da liberdade de expressão propriamente dita considerem fatores éticos e políticos, objetivando aprofundar o debate filosoficamente e apreender a multiplicidade e complexidade da questão, não permanecendo, desta forma, em uma discussão rasa cujo fundamento não é outro senão opiniões e vivências pessoas somadas ao impulso e desejo subjetivos de que fosse verdade. Wallace Guilherme. Graduando em Filosofia pela UEPB.

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