top of page

Nick Cave e o prenúncio da beleza no fim dos tempos

Jefferson Silva - E-mail: jefferson5684@gmail.com


 

A pandemia pode ter impedido a reunião dos Bad Seeds com Nick Cave para gravar seu mais novo álbum, mas não impediu que esse hiato interpessoal fosse tema de suas novas composições. Mesmo sem sua banda, Nick se junta a seu fiel escudeiro, Warren Ellis, para gravar Carnage, álbum que dá continuidade a sequência iniciada por Skeleton Tree, lançado em Setembro de 2016, que marca a mais profunda entrega do cantor australiano as cicatrizes da dor e do sofrimento.


A escrita em circunstâncias adversas se tornou característica de Cave nos últimos anos. Skeleton Tree é marcado pela morte de Arthur, filho de Nick que falece após cair de um penhasco durante as gravações do álbum, gravações essas que duraram exatos 18 meses. Duas semanas após o triste acontecimento o compositor retorna ao estúdio junto com Warren, seu melhor amigo e líder dos Bad Seeds, para revisar o material que já haviam produzido. A partir daquele momento, Nick decide que suas musicas transmitiriam o seu desejo de redenção e a cada vez mais latente súplica pelo reencontro com seu filho.


A primeira faixa de Skeleton Tree é Jesus Alone, canção que se inicia com Cave cantando “you fell from the sky, crash landed in a field”, ou seja, “você caiu do céu, aterrissou em um campo”. A conotação é ambígua e aqui nos é mostrada uma das principais características da escrita de Nick Cave, o caráter completamente interpretativo. Ouvir Cave é também entender que tudo o que ele compõe é consequentemente ligado a sua própria existência, acontecimentos dispostos em variáveis oscilantes são suas principais fontes de inspiração. Em uma frase que o título poderia de cara nos entregar que o enredo é acerca do Deus caído, com o fator subjetivo e os acontecimentos que antecedem a musica acabamos formando a equação, aquele que cai do céu é Arthur, que também é Cristo quando se entrega para a vida eterna. Ele continua no refrão dizendo “with my voice, i´m calling you”, pela primeira vez Nick não aceita a partida de seu filho e, norteado por sintetizadores exala a tristeza da perda. Já chegando ao final da canção ele fala “let us sit together in the dark until the moment comes”, logo, aceitar a resignação não é desistir, mas sim ter certeza que a redenção está próxima.


Na terceira e mais triste faixa do disco, Girl in Ambar, Nick entra em um processo de reminiscência, relembra o inicio do percurso com os Bad Seeds em 1984, ele diz “the song, the song, the song it spins, since nineteen eighty-four”. Olhar para trás com orgulho é consequentemente ter certeza que tudo aquilo que te antecede foi fundamental para você se tornar o que é hoje, mas também pode representar a incerteza perante o fim. Com voz frágil e elevando sua dor até as ultimas consequências, Cave canta “I knew the world it would stop speening now, since you´ve been gone. I used to think that when you died”, é como se a construção estética da canção fosse intencionalmente moldada para que cada palavra seja declamada enquanto substância da dor. Ele monta uma peça de teatro em que a perda é o norte do enredo e o sofrimento é o fio condutor que junta às palavras como elas devem ser ditas. À finitude está disposta em um penhasco.


No final, Nick encerra o álbum com a música titulo, é em Skeleton Tree que de maneira mais leve ele tenta se convencer de que tudo ficará bem no final, tendo em vista que é a proximidade que une o começo ao fim. Ele canta “I Called out, i called out, that nothing is for free. And its alright now, and its alright now, and its alright now...”, é na repetição, não para o público, mas si mesmo que ele tenta acreditar em algo melhor. São oito faixas de pura dor versificada, aqui apenas apresentei três essenciais para que da maneira mais pedagógica possível pudéssemos entender quais as intenções por trás dessa obra. É apenas ouvindo que o aprofundamento se faz compreensível. Nick Cave é aquele músico que você escuta seus álbuns a primeira vez por prazer, às vezes subsequentes por estudo e posteriormente retorna ao prazer. É tentando compreender o porquê aquele homem escreveu aquilo que conseguimos entender porque aquela determinada canção é assim.


Três anos após Skeleton Tree, Nick surpreende os fãs com Ghosteen, para aqueles que acreditavam que o cantor não poderia conceber algo ainda mais doloroso, nos deparamos com esta que para mim é a obra prima do nosso século. Ainda mais doloroso que seu antecessor, Ghosteen nos mostra que o tempo pode até passar, mas a dor de Nick é eterna. Comovente, arrebatador e completamente indispensável aos amantes da boa musica, o álbum se mostra insuportável, de tão complicado de ser digerido.


Ghosteen é um álbum duplo, a primeira parte Nick chamou de “crianças”, já segunda de “adultos” ou os “pais”, ainda completou falando que seu novo trabalho seria uma espécie de espírito migrante. O que nós temos são dois atos muito bem construídos, um com oito faixas e o outro com três em que o cantor declama os seus sentimentos da forma mais pesada possível. Carregado de sintetizadores latentes do inicio ao fim, Ghosteen é o retrato holístico de um pai em luto, que mesmo cantando a todo o momento canções de partir o coração, ainda tem esperança no fim de tudo.


Bright horses é minha faixa preferida do álbum. Aqui, de forma parricida, Nick comete o único crime passional de sua vida, ele nega Deus. O Deus que o acompanha desde seus primeiros passos na musica não é mais necessário por um curto período de tempo. Aquele mesmo homem que cantou “I don´t believe in an interventionist god” agora diz “the fields are just fields and there aint no Lord”. A busca é por redenção, mas o que nos chega são sentimentos de um homem perdido. Já na faixa seguinte, Wainting for you,ele canta novamente de maneira completamente suplicante a volta, ou pelo menos o reencontro com seu filho Arthur. Nick não chegou a falar em nenhuma entrevista que nesta faixa ele canta uma súplica pelo filho, mas o gesto se mostra tão evidente que não precisa ser dito. “Ghosteen Speaks”, penúltima faixa da parte infantil do álbum e ostensivamente a pedra angular do álbum conceitual, se apresenta enquanto um monólogo do personagem titular, mas também o personagem (algum tipo de super-herói?) “Ghosteen” dizendo “ Estou ao seu lado / Procure-me”.


A segunda parte do álbum duplo, o seu lado adulto, é composto por três faixas, um poema e duas canções. O destaque é dado para Hollywood, que em 14 minutos Cave declama acerca da história de Kisa Gotami, que no folclore budista teria sido uma mulher que ao ver seu filho sem vida, sai em um ato de completo desespero batendo de porta em porta perguntando a todos o que deveria fazer; com a voz em falsete, Nick se entrega a tristeza enquanto emite os sons das palavras. Cada frase sai de sua boca como uma faca que entra no seu peito, mas não o mata, apenas intensifica a dor que se mostra eterna aqui, mas próxima do fim com a possibilidade do reencontro em comunhão. É impressionante o quanto algumas pessoas tiveram que sofrer de formas tão terríveis para que nós pudéssemos ter contato com obras de arte tão lindas. Ghosteen não é “apenas” um álbum de crianças e adultos, mas sim um álbum que tem o início a partir da perspectiva das crianças que morrem e se encerra com o luto dos pais.


Para concluir o ciclo apocalíptico chegamos a Carnage, uma colaboração entre Nick e o multi-instrumentista Warren Ellis, já citado aqui, amigo de Cave e integrante dos Bad Seeds, é uma meditação relativamente tranquila sobre a salvação espiritual na era da solidão. Em cada uma das oito faixas do álbum, Cave tenta dar sentido ao seu lugar no mundo, conforme ele o vê desmoronando ao seu redor. Carnage mostra que o único artista que estava “preparado” para meses de bloqueio e distanciamento social por conta da profunda imersão em um contexto de mortes, com toda certeza seria Nick Cave, cuja musica vem lidando com o conceito de perda há algum tempo. Uma coisa é certa para quem acompanha a carreira do musico australiano e sua banda: o macabro é tema transversal de suas composições.


Na abertura do álbum, “Hand of God”, através de um blues disperso, porém barulhento e desconstrucionista, ele canta sobre pessoas que buscam o paraíso, transformando essa busca em uma história de sobrevivência, esperando por intervenção (aquele mesmo que em outrora, como já havia dito aqui antes, cantara “Eu não acredito em um Deus intervencionista”). É forte e evocativo, especialmente quando uma voz canta, "mão de deus", em falsete atrás de seu barítono. As cordas de Ellis se expandem ao seu redor, como ondas ultrapassando-o.


Boa parte das canções de Nick, principalmente nos últimos álbuns, vêm falando sobre se despedir de alguém que você ama, através de um movimento inverso essa mesma temática ganha áreas de reencontro. A faixa “Albuquerque”, por sinal minha preferida, fala sobre se sentir feliz diante de uma situação irreversível, ele canta “And we won't get to anywhere / Anytime this year, darling”, e sob a flutuação de sintetizadores chorosos ele complementa “Anytimes this year / we won´t get to anywhere, Darling”, a realidade desejada só é possível no campo imagético, mas efetivamente ela se torna acessível no fim.


É em White Elephant que Nick demonstra o auge de sua revolta, mesmo sempre se abstendo de um posicionamento politico em boa parte de sua vida, até mesmo por ser um homem perturbado por muitas dores existenciais, dessa vez ele se abstém de se abster e apunhala a extrema direita de tal forma que com certeza eles devem ter sentido de imediato assim que ouviram a canção. É interessante falar que Nick sempre foi um cara bastante querido no espectro ideológico à direita, não apenas por ser essa pessoa que transparece um distanciamento do meio político, mesmo evitando falar até desse distanciamento, mas principalmente por cantar acerca de Deus. É em White Elephant que Deus ganha uma nova conotação, partindo do principio de que o elefante branco seria uma espécie de esfinge política e Deus um manifestante reivindicando perante sua existência, ele canta “The white hunter sits on his porch / With his elephant gun and his tears / He'll shoot you for free if you come around here / A protester kneels on the neck of a statue / The statue says "I can't breathe" / The protester says "Now you know how it feels", em tradução livre ficaria como “O caçador branco está sentado em sua varanda / Com sua arma de elefante e suas lágrimas / Ele vai atirar em você de graça se você vier por aqui / Um manifestante se ajoelha no pescoço de uma estátua / A estátua diz “não consigo respirar” / O manifestante diz “agora você sabe como é”. Mas no meio da música, com o som de tambores de metralhadora, a violência termina abruptamente, Cave e um coro cantam em êxtase: "A hora está chegando, a hora está próxima / Para o Reino no Céu." É um momento em que as nuvens estacionam e a esperança brilha.


Por fim, o que transparece neste ultimo trabalho de Nick Cave é que apenas na unidade espiritual que é possível escapar da carnificina. Um homem que ao longo de seus últimos trabalhos se mostrou completamente dilacerado pela dor da perda, imerso no sofrimento, mas que do nada ressurge para nos mostrar que é justamente aquele que mais sente que consegue ter empatia com a dor do outro, esse nunca morrerá, seja por dentro ou por fora. Já aqueles se mostram avessos ao sofrimento já foram consumidos pela carnificina da alma desde os seus primeiros dias, para esses não existe salvação. Um homem que parecia perdido justamente por sentir, agora canta que é exatamente por sentir que ele sabe muito bem onde está e qual o seu papel aqui. É muito bom estar vivo, sobreviver à carnificina e poder ouvir Nick Cave. É por esse tipo de coisa aparentemente minúscula, mas profundamente gigantesca, que sou grato. Obrigado, Nicholas.

Posts recentes

Ver tudo

Comments


Contate-nos 

Obrigado pelo envio!

Mantenha-se atualizado

Obrigado pelo envio!     Poíesis em Devir

  • Ícone do SoundCloud Branco
  • Ícone do Facebook Branco
  • Ícone do Twitter Branco
  • Ícone do Instagram Branco
  • Ícone do Youtube Branco
© 2021por POÍESIS EM DEVIR. Orgulhosamente criado com Wix.com
bottom of page