Nelson Rodrigues, Franz Brentano e Jean-Paul Sartre: Acerca dos múltiplos aspectos da consciência
- Jefferson Silva - E-mail: jefferson5684@gmail.com
- 28 de jul. de 2023
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Atualizado: 28 de jul. de 2023
O problema da consciência em Franz Brentano
Franz Brentano, filósofo alemão do final do século XIX e início do século XX, é conhecido por sua abordagem única ao estudo da consciência. O problema da consciência em Brentano é uma questão fundamental na filosofia da mente, que se refere à compreensão da natureza e do papel da consciência na experiência humana.
Brentano argumentava que a consciência é a característica distintiva da mente, o que significa que todos os estados mentais são conscientes por natureza. Ele acreditava que a consciência é direcionada para objetos intencionais, ou seja, objetos mentais aos quais a mente se refere. Por exemplo, quando temos uma experiência visual de uma maçã, nossa consciência está direcionada para a maçã em si.
Ele (Brentano) escolhe empregar a palavra “consciência” como sinônima para fenômeno ou ato psíquico, por ser uma expressão mais simples e fácil, e também porque tal palavra, segundo ele, “indica um objeto, do qual a consciência é consciente [von welchem das Bewusstsein Bewusstsein ist]” (Brentano, 1924, p. 143 [102]) – o que já sugere a visão da consciência como autorreferente. Brentano parte da ideia (fundamentada por ele em capítulo anterior do livro) de que toda consciência é consciência de um objeto, e procura responder a questão sobre se “não existe nenhum fenômeno psíquico que não seja objeto de uma consciência.” (Brentano, 1924, p. 143 [102]). (PRATA, 2017, p.8)
Uma das contribuições mais significativas de Brentano para o problema da consciência é sua distinção entre atos mentais (ou atos psíquicos) intencionais e conteúdos mentais intencionais. Segundo ele, os atos mentais são as atividades da mente que se voltam para os objetos, enquanto os conteúdos mentais são as representações mentais dos objetos. Essa distinção é importante porque permite que a consciência seja entendida como uma relação entre o sujeito consciente, o ato mental e o objeto intencional.
Temos, por um lado, o fenômeno psíquico, que é consciente e dirigido a um objeto, e, por outro lado, o fenômeno físico, destituído de qualquer intencionalidade. Devemos determinar o número de representações envolvidas nesse caso particular pelo número de objetos que se apresentam (nesse caso) ou pelo número de atos psíquicos que ocorrem nele? Se escolhermos o primeiro critério ocorre, certamente, uma multiplicação de representações, pois o fenômeno físico e o fenômeno psíquico são distintos, e assim como o fenômeno psíquico representa o objeto físico, tem de haver uma representação do primeiro fenômeno psíquico, que também tem de incluir a representação do objeto físico, de modo que este tem de ser representado duas vezes. (PRATA, 2017,P.11)
No entanto, o problema da consciência em Brentano também enfrenta críticas e desafios. Um dos principais questionamentos é a questão da consciência de si mesma. Brentano não abordou adequadamente a autoconsciência, ou seja, a consciência que a mente tem de si mesma. Além disso, sua teoria não fornece uma explicação completa para fenômenos como a consciência de estados mentais inconscientes, como aquilo que podemos chamar de processos subliminares.
Brentano rejeita a ideia de fenômeno psíquicos inconscientes, chegando mesmo a dizer que alguns pensadores, familiarizados com o fato de que podemos possuir um tesouro de conhecimentos adquiridos sem pensar neles, concebiam esses conhecimentos “de modo totalmente correto” (Brentano, 1924, p. 144 [103]) como disposições para certos atos de pensar. Sendo assim, é importante para ele rejeitar cada um desses tipos de argumentação contra a tese (aceita por ele) de que todo fenômeno psíquico é consciente. (PRATA, 2017, p.9)
Nesse sentido, surge mais um grande desafio enfrentado pela teoria de Brentano, que é a relação entre a consciência e o cérebro. Ele considerava a consciência como uma propriedade essencialmente mental, separada da atividade neural. No entanto, a neurociência moderna tem mostrado evidências de que a consciência está intimamente ligada aos processos cerebrais, o que levanta questões sobre como reconciliar a abordagem de Brentano com os avanços científicos contemporâneos.
Apesar desses desafios, o trabalho de Brentano continua sendo uma contribuição importante para o estudo da consciência. Sua ênfase na intencionalidade e na relação entre a mente, os atos mentais e os objetos intencionais influenciou de forma significativa filósofos posteriores, como Edmund Husserl e Martin Heidegger, que desenvolveram e expandiram suas ideias. A discussão sobre o problema da consciência em Brentano continua a ser relevante e estimulante para os filósofos da mente e da consciência nos dias de hoje.
Consciência em Sartre
Jean-Paul Sartre, filósofo francês do século XX, também abordou o problema da consciência de maneira significativa, e a abordagem de Brentano pode ser relacionada com a perspectiva de Sartre acerca do problema da consciência.
Sartre compartilhou com Brentano a ideia de que a consciência é direcionada para objetos, mas sua perspectiva diverge ao enfatizar a liberdade e a responsabilidade individual na construção da própria consciência. Para Sartre, a consciência não é apenas uma relação entre o sujeito e o objeto, mas também implica uma dimensão de escolha e autodeterminação.
Sendo assim, parece justificado dizer que a proposta do autor de O ser e o nada para conceber a relação entre consciência (intencional) e autoconsciência é mais sofisticada e bem sucedida do que a proposta do autor da Psicologia do ponto de vista empírico, pois o uso do conceito de objeto pressupõe uma contraposição entre este (objeto) e aquilo que o apreende, assim como o uso do conceito de conteúdo pressupõe uma diferença essencial entre este (conteúdo) e aquilo que o contém, de maneira que o palco para um regresso ao infinito está montado. No que evita o uso de conceitos como esses, e no que recusa a ideia da consciência como um tipo de percepção, Sartre consegue elaborar uma concepção de consciência mais coerente com o caráter auto referencial que os dois filósofos (Brentano e Sartre) atribuem à consciência. (PRATA, 2017, p.18)
Enquanto Brentano enfatizava a intencionalidade da consciência, Sartre argumentava que a consciência é sempre consciente de si mesma, ou seja, possui uma autoconsciência intrínseca. Para Sartre, a consciência é caracterizada por um "para si" que a distingue de outros tipos de seres e objetos no mundo. Essa autoconsciência implica que a consciência não é apenas um observador passivo dos objetos, mas está ativamente envolvida na construção de significados e na tomada de decisões.
Outro aspecto relevante da visão de Sartre é sua abordagem existencialista. Para ele, a consciência humana está sempre envolvida na busca de significado e na confrontação com a angústia e a liberdade. Sartre argumentou que somos livres para escolher nossas ações e, portanto, somos responsáveis por elas. Essa liberdade implica uma constante tomada de decisões que moldam nossa consciência e nossa relação com o mundo.
Em contraste com a visão de Brentano, que enfatiza a consciência como uma propriedade essencialmente mental, separada do corpo, Sartre enfatizou a interconexão entre a consciência e o corpo. Ele argumentou que a consciência está sempre inserida em um contexto situacional e corporal, e que nossas experiências e ações são influenciadas por nossas circunstâncias físicas e emocionais.
A consciência, por sua vez, é uma relação a algo que não está simplesmente dada, pois é uma relação que, ao mesmo tempo em que se lança sobre o seu objeto, apreende-se a si mesma. É isso que caracteriza a existência da consciência como um modo de ser para-si, pois, para ela, “existir é ter consciência da sua existência.” (Sartre, 1978, p. 35). (PRATA, 2017, p.2)
Portanto, embora Brentano e Sartre abordem o problema da consciência de maneiras diferentes, ambos contribuíram para a compreensão da consciência como uma atividade intencional e relacionada ao mundo. Brentano concentrou-se na relação entre a mente, os atos mentais e os objetos intencionais, enquanto Sartre enfatizou a liberdade, a autoconsciência e a interconexão entre a consciência e o corpo. Suas perspectivas complementares continuam a influenciar o debate contemporâneo sobre a natureza e o significado da consciência.
Consciência em Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues, renomado dramaturgo e escritor brasileiro do século XX, também abordou de maneira profunda e provocativa as questões da consciência humana em suas peças teatrais e textos jornalísticos. Embora suas obras não tenham um foco filosófico direto na consciência, elas exploram a natureza humana, seus conflitos internos e suas dimensões psicológicas.
Um aspecto interessante nas obras de Nelson Rodrigues é o papel do inconsciente e do subconsciente na formação da consciência. Seus personagens muitas vezes são movidos por impulsos irracionais e estão sujeitos a forças psicológicas ocultas. Ele explora as contradições entre a mente consciente e os desejos reprimidos que emergem do inconsciente, revelando os conflitos internos e as tensões psicológicas presentes na consciência humana. Em muitas de suas peças, a consciência é retratada como uma arena onde se desenrolam conflitos morais e psicológicos intensos. Os personagens de Nelson Rodrigues são frequentemente confrontados com dilemas éticos, segredos obscuros e desejos proibidos. Suas consciências são retratadas como tumultuadas e atormentadas, incapazes de encontrar paz ou redenção.
No romance Asfalto selvagem, de Nelson Rodrigues, que é dividido em duas partes. A primeira parte trata dos doze aos dezoito anos e a segunda depois dos trinta, da vida da protagonista, Engraçadinha, compreendendo núcleos de personagens e cenários igualmente distintos. A divisão do romance em duas partes é de extrema relevância, pois, é justamente através desta dualidade que se instala o enredo, a partir da protagonista. Na segunda fase, Engraçadinha é extremamente religiosa, casada com Zózimo há vinte anos, ela antagoniza o seu próprio eu do passado se tornando uma respeitada mãe de família, o total oposto do que fora na sua juventude, em Vitória-ES. Porém, em dado momento, ela redescobre o prazer do sexo exatamente quando a Engraçadinha do passado aflora e, com ela, ressurge Letícia, uma prima que não só acompanhou toda a relação incestuosa entre Engraçadinha e Sílvio, mas também se declarou apaixonada por Engraçadinha, questão lapidar dentro da ambiguidade de temas aparentemente antagônicos expostos por Nelson, mas que se mostram enquanto faces de uma mesma moeda hipócrita de uma sociedade brasileira que julga a partir de um ideal inexistente.
Em Asfalto Selvagem podemos analisar um ponto fundamental, a traição e a família. Assim como Arnaldo traiu o irmão, tendo um filho com a cunhada, Engraçadinha, mesmo noiva de Zózimo, começa um caso de amor com o primo (perceba o detalhe fundamental que se apresenta na nuance quase que sutil: o ato acontece no divã da biblioteca da casa de Arnaldo). Na segunda fase do romance a protagonista também menciona a fixação de Durval na irmã caçula, Silene, o que faz Engraçadinha lembrar-se de si própria e de Sílvio, ainda mais levando-se em conta a semelhança que havia entre os personagens, tanto no aspecto físico como no comportamental.
“A análise da família pode, então, ser encarada como algo que estabelece um laço indissolúvel entre o aspecto psicológico e a onisciência e a onipresença do narrador, já que esse, ao entrar em contato com o espaço privado, acaba conhecendo segredos relacionados aos personagens, que, por sua vez, carecem de uma análise mais profunda. Dessa forma, o desvendamento do plano psicológico serve, simultaneamente, para aprofundar a ambiguidade do caráter humano, em se tratando do aspecto individual, bem como sustenta a crítica que estabelece a hipocrisia como principal qualidade social. Defeito ou virtude? Sem dúvida, para Nelson Rodrigues, um defeito a ser exterminado, mas, para a sociedade da época, uma qualidade, afinal, a hipocrisia permitia fechar os olhos para os problemas, propiciando a criação de um universo confortável.” (KOBS, Asfalto Selvagem: uma narrativa em crise, 2012, p.172)
Através dos personagens, Nelson Rodrigues examina a natureza humana em seus aspectos mais sombrios e contraditórios. A consciência dos protagonistas é retratada como uma arena onde se desenrolam batalhas internas intensas, entre o desejo e a razão, entre a moralidade e a transgressão.
A obra também aborda a influência do contexto social e familiar na formação da consciência dos personagens. A família em "Asfalto Selvagem" é marcada por segredos, traições e relações disfuncionais, o que leva a uma tensão constante entre as consciências individuais e as expectativas sociais. Os personagens estão presos em um ambiente opressivo que molda suas consciências e influencia suas ações.
Outro aspecto importante explorado no livro é a questão do destino e da culpabilidade. Nelson Rodrigues coloca em xeque a noção de livre-arbítrio e questiona até que ponto os personagens são responsáveis por suas ações, considerando as circunstâncias e os eventos que moldaram suas consciências ao longo da vida.
É justamente através da sobreposição temática entre aparência e essência que Nelson desconstrói a tão orgulhosa imagem da família brasileira feliz e ordenada dentro de um padrão incorruptível. Assim, um tema até então tido como “sagrado” como a questão da virgindade é jogado na mesa enquanto norte da denúncia cada vez mais urgente, a denúncia de que o Brasil é um país que acontece “por baixo dos panos”. Depois de Engraçadinha inventar que está grávida, Arnaldo a leva para uma consulta ginecológica, buscando ter certeza sobre o que a filha afirmava. Porém, para tomar tal atitude, o pai cerca-se de cuidados, buscando pretextos para se informar sobre um médico de confiança e optando, inclusive, por um horário fora do expediente normal, para assegurar o segredo, afinal, era uma pessoa conhecida e não podia ser confrontado em escândalos. Também o médico dá a sua colaboração para ressaltar a importância de se manter a aparência a qualquer custo, quando diz ser possível reconstituir a virgindade da moça, saída aceita pelo pai, mas não por Engraçadinha. Para além das questões morais, a aparência se sobrepõe sempre em uma sociedade que essencialmente julga o indivíduo, não pelo que ele é, mas pelo que aparenta ser;
“— Faço questão de explicar. Um momento! É rápido. Como eu ia dizendo: — eu era um médico que usava a ética tradicional como todo o mundo. Achava o abôrto uma indignidade e nunca me passaria pela cabeça a idéia de devolver a virgindade de uma pobre moça. Note que eu falo ao pai e não ao deputado, ao homem público. Não me interessa o Poder, a Autoridade, o Estado. Mas eu linha uma filha, justamente a mais velha, linda garota, linda. Minha filha gostou de alguém e, vamos usar a expressão do povo: — deu um mal passo. Família rigorosa, muito preconceito e, resumindo: — minha filha se matou. Ora, eu lhe digo, ao senhor que é pai, digo-lhe com a maior naturalidade: — eu daria tudo e insisto: — absolutamente tudo para que minha filha tivesse encontrado um crápula. Um crápula igual a mim, sim, senhor. Entendeu?” (RODRIGUES, Asfalto Selvagem, 1959, p. 109)
"Asfalto Selvagem" apresenta uma visão sombria da consciência humana, expondo as fraquezas, as obsessões e os conflitos internos dos personagens. Através de sua narrativa, Nelson Rodrigues mergulha nas profundezas da psicologia humana, explorando os meandros da consciência individual e coletiva em um ambiente carregado de tensão, segredos e repressões.
CONCLUSÃO
Por fim, fica nítido que o problema da consciência pode ser trabalhado através de diferentes perspectivas, principalmente a partir de um gatilho inicial que tem seu ponto de partida na Grécia antiga e deságua em Franz Brentano, sendo este último responsável por desenvolver o tema de maneira que várias outras ramificações fossem possíveis.
Lacunas podem ser enxergadas, como a partir da problemática do inconsciente, de certa forma negligenciada pelo autor, mas posteriormente desenvolvida e, de certa forma, até mesmo corrigida por seus sucessores, como é o caso de Sigmund Freud, seu aluno. Também a possibilidade de preenchimento da lacuna pode ser enxergado e também de correção, como no caso de Sartre. Mas também a possibilidade de análise da realidade através da perspectiva literária se faz presente, como no caso de Nelson Rodrigues, que mesmo nunca tendo lido Brentano, pode dissecar a consciência do povo brasileiro a partir de algo próximo ao que disse Brentano. Neste sentido, a sua filosofia e análise da consciência se mostram importantíssimas para a compreensão humana.
BIBLIOGRAFIA
PRATA, Tárik de Athayde. As perspectivas de Brentano e Sartre sobre a auto-referencialidade da consciência. Rapsódia, n°10. 2017.
Kobs, Verônica Daniel. Asfalto Selvagem: uma narrativa em crise. Guavira Letras, n.15. 2012.
Rodrigues, Nelson. Asfalto Selvagem. Companhia das letras, 1994.

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