top of page

Fontes Judiciais: Eu, Pierre Riviere

  • Foto do escritor: José Odincs
    José Odincs
  • 12 de ago. de 2022
  • 9 min de leitura


Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão... um caso de parricídio do século XIX. apresentado por Michel Foucault; tradução de Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1977.


Na obra Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, Foucault organiza os relatos do ocorrido com depoimentos de Pierre Riviere por volta do ano de 1830. Um caso curioso de análise das narrativas jurídicas junto à inserção das narrativas psiquiátricas, por assim se dizer fontes médicas. As disputas de narrativas a partir da imputação da culpa por conta do ato criminoso que deve ser punido. O livro faz o exame demonstrativo de tudo que ocorreu sem se comprometer com determinados diagnósticos acerca de posições morais no sentido de um tipo de valorização que perpassa a montagem da própria obra que permeia vários depoimentos. Há um modo genealógico cinza de tentar analisar os discursos jurídicos e psiquiátricos, o discurso psiquiátrico que pretende verificar resquícios de sanidade ou insanidade no liame da definição ou captura do diagnóstico de loucura de Pierre Riviere. Não interessa o que Foucault acha que é Pierre e sim o que os discursos tecem sobre sua figura, discursos esses de âmbitos políticos e psiquiátricos que mostram novos parâmetros na construção de um monstro moral ou biológico por trás de Pierre Riviere. Na busca de pesquisar a história e suas urdiduras entre a psiquiatria e a justiça penal, nesses meandros encontrasse o casso de Pierre. Peculiaridades controversas nessa trama são os seis relatórios médicos que divergiam entre suas conclusões, três deles amparavam a definição de mostro biológico e outros três afirmavam a inexistência de qualquer indicio de alienação constatada em Pierre, o colocando assim enquanto monstro moral. O tripé nas analises médicas elencadas entorno do personagem principal do ato eram: o seu caráter, a loucura e a sua imbecilidade. Pierre que alega ter baixa instrução escolar, mas nutrir o gosto pela leitura, durante sua prisão preventiva teve a tarefa de redigir explicações sobre o crime praticado. Apesar de emblemático o caso de Pierre não entra para a literatura da psiquiatria nem muitos menos para a literatura penal, não foi um grande caso aos olhares dos cânones, o dossiê de Pierre revelava manias e um estado paranoico em suas ideias. A linha tênue no discurso de Pierre, um louco ou um criminoso? (Ou um misto desses dois?) Buscar as peças do caso é o que pretende Foucault através do suporte das fontes judiciais, arquivos da imprensa, relatos de testemunhas, fontes médicas e o próprio memorial traçado por Pierre. Foucault então adota o método cronológico para a aglutinação dos fatos através da reunião das fontes elencadas. No tocante ao dossiê do crime observamos uma análise minuciosa do juiz de paz com relação ao fato, fato esse que é tratado como horrendo e de grande selvageria, segundo a descrição a mulher foi assassinada enquanto cozinhava um mingau, o menino evidentemente foi morto por uma paulada e a moça também morta e arrancado parte dos seus cabelos. Sinais hediondos são observados nas vítimas supracitadas, Victorie Brion (mãe de Pierre) apresenta evidência clara de uma morte por degolamento, e mais horrenda ainda é que a perícia ao averiguar o corpo constata a gravidez dessa vítima, identificando assim um feto feminino a mais o menos seis meses de gestação em curso. A segunda vítima era uma criança de seus sete ou oito anos por nome de Jules Riviere (irmão de Pierre) eram evidentes as marcas truculentas na cabeça do pequeno, já a terceira vítima tratava-se de uma moça de seus 18 anos (irmã de Pierre) que apresentava lesões na cavidade craniana e sem parte dos cabelos. Semelhante nas três vítimas eram os golpes assinalados nas cabeças de cada qual, evidenciando mortes por degolamento. Segundo relatos das testemunhas as vítimas foram degoladas por Pierre Riviere a foiçadas, o sangue frio do assassino mostra sua ardilosidade ao promover tamanha violência. O executor de tal selvageria dizia ao voltar do crime que praticou tais atos para libertar seu pai do fardo que carregava fardo esse que era a infelicidade que sua mãe o causava. Montando o perfil de Pierre destacasse que desde a infância era um garoto problemático avesso aos afetos familiares, o próprio nunca demonstrou o mínimo carinho por seus pais, no entanto esse comportamento era fruto de ser filho de uma mãe odiosa, desde sua tenra idade o mesmo carregava em seu intimo atitudes violentas, tais como esmagar passarinhos com pedras, o que aparentemente lhe causava prazer, eram rotineiras suas fugas escondido dos pais para o mato, o mesmo elencava ter pacto com o demônio e portar dons sobrenaturais, tais evidências já levam a constatação do grau de alienação em Pierre Riviere. Pierre ao ir crescendo adquiri o habito da leitura, o que lhe trouxe uma devoção pelo elemento da religiosidade. O jovem era cabisbaixo, tinha sangue frio, isso se constata ao verificar que mesmo ao praticar tal crime ele sai calmamente do local a passos lentos como se nada houvesse acontecido. Com seus vinte anos de idade já denotava tamanha periculosidade em sua essência sombria. A prisão de Pierre logo é efetuada ao decorrerem seus mandatos de busca e apreensão, Pierre afirma que praticou tais crimes, pois as vítimas pecavam contra Deus, sendo assim o confuso criminoso enaltece que tal atentado foi uma ordem divina, a qual não carecia de arrependimentos, tudo foi premeditado antes da execução. Valendo salientar algumas peculiaridades familiares, os pais de Pierre eram separados, e sua mãe nunca cumpriu com os deveres maternais no tocante a cuidado e afeto que o espírito de mãe exige. No interrogatório de Pierre ele responde as indagações sem remorso de consciência aparentemente tranquila, confessa o ato praticado perante o interrogatório e reafirma que tudo foi feito por ordens divinais a fim de livrar seu pai do fardo da infelicidade que sua mãe o causava. Pierre tece uma argumentação embasada na bíblia para sustentar seu posicionamento e através deles elenca os porquês de suas atitudes serem uma providência divina, primeiramente por seu pai ser perseguido pela sua mãe que já ocupava o cargo de ex-esposa, esse foi o real motivo que dedilhou o gatilho para a feitura dos cruéis assassinatos, Pierre entre em contradição em seu interrogatório, diz que não nutria más intenções contra sua mãe por saber que era pecado, todavia mesmo assim a matou friamente, vindo a também matar seus outros dois irmãos por apoiarem as atitudes da mãe no cotidiano. Nos altos processuais observamos os relatos das testemunhas que diziam conhecer pouco sobre o jovem Pierre Riviere, comum em todos os relatos é o fato de Pierre não ser um garoto comum, ter comportamento estranho, não nutrir vínculo por relações sociais e atentar contra a vida dos animais, principalmente gatos e passarinhos, muitas testemunhas relatam que o garoto tinha comportamento desvairado com traços de alienação. O seu comportamento estranho, viver solitário, sem afeto pela vida, isso tudo era motivo de desgosto para seu pai, no entanto seu patriarca nunca castigava e sempre o tratava com palavras doces. Em um segundo interrogatório o réu revela detalhes ainda mais assustadores, traços sado masoquistas em sua fala são possíveis de serem facilmente identificados quando o mesmo relata que o sentimento de dor no outro lhe causava prazer e ao mesmo tempo apetecia sua alma. Na detenção Pierre se debruça a escrever minuciosamente um grande montante relatando as formas pelas quais sua mãe sequestrava a paz do seu pai, que era um homem doce e bem quisto por todos, nestas laudas Pierre também faz uma autodescrição na qual predomina características do seu viver solitário, o jovem vivia a esmo em sua vida, só conversa ao ser perguntado sobre algo. Na sua sela de prisão Pierre passa a ser avaliado por um profissional da saúde, profissional esse que constata aptidão intelectual no criminoso emitindo laudo que aos olhos da ciência não predominava indícios de alienação. Os relatos no memorial escrito por Pierre evidenciam que os problemas familiares eram corriqueiros, o relacionamento de seu pai sempre foi conturbado, em meio a inúmeras procelas, e isso evidentemente desenvolveu sérios traumas no garoto, que desde a infância não soube o que era uma boa estrutura familiar. O Dr. Bouchard especialista de mérito em sua área faz uma análise mais apurada sobre o perfil de Pierre, o médico evidencia através dos exames fisiológicos e psicológicos traços de melancolia no assassino. O médico constata a frieza intelectual do indivíduo, demonstrada pela forma à qual Pierre respondia as indagações proferidas pelo profissional sem quaisquer remorsos sobre o crime praticado, inclusive esse posicionamento do paciente causava certo incômodo ao legista, o médico ao ir conversando com Pierre vê indícios que o crime realmente tenha motivações dos traumas que o acusado sofreu em sua infância, a infelicidade do pai do criminoso por causa da rispidez da sua mãe, Pierre não suportava mais tanto descaso com seu patriarca e vê na prática do crime a libertação das grades da infelicidade do seu pai. No monitoramento que o legista fez a Pierre não se constata nenhuma alienação, e sim uma exaltação momentânea no momento da execução. O pai de Pierre ao vivenciar toda a situação mergulha ainda mais no posso existencial da sua infelicidade diante dos fatos, não se conforma ao ver os diagnósticos não apontarem a loucura do seu filho, o pai do criminoso assegura que desde a infância era evidente a alienação por parte do seu rebento. O pai do réu então contrata um jovem advogado para realizar a defesa do seu filho, advogado esse que de imediato ao tomar consciência do fato logo se apoia no argumento de seu paciente ser portador da loucura, loucura essa que era demonstrada em traços intelectuais nada sadios, passasse então a investigar uma possível alienação hereditária no jovem Riviere, é constatado que o acusado é descendente de uma família em que a alienação passa de geração para geração, o seu tio materno morreu alienado, alguns primos também apresentavam essa afecção, a mãe de Pierre mesmo sofria de indícios de loucura sendo possível evidenciar nela através do seu espírito odioso, o irmão ao qual Pierre veio a executar era também portador dessa anomia, nele se manifestando através da completa idiotice, através desses indícios pode-se deduzir que a alienação em Riviere apresentava-se de modo a apurar sua inteligência para o desenvolvimento de práticas nocivas. A alienação de Pierre pode ser constata através das suas distorções em seus discursos, por exemplo: o mesmo busca amparo no livro sagrado para justificar o crime praticado, ao elencar a passagem que Jesus morreu na cruz em defesa da humanidade Pierre faz a analogia que matou a sua mãe e os seus dois irmãos em apologia da felicidade do seu pai, a sua mãe era a causadora da infelicidade sob a óptica de Pierre e os seus irmãos coniventes com ela, Riviere ao matar sua mãe e irmãos em sua concepção estaria dando a alforria da infelicidade ao seu pai. De início Pierre ao orquestrar o crime pensava em se matar em seguida, mas durante o planejamento mudou de ideia, julgou necessário que teria que continuar que continuar vivo para ficar como exemplo para o século das luzes. Quanto ao julgamento que durou mais de três horas entre os embates de acusação com os argumentos de Pierre ter alta capacidade intelectual e o contra-argumento da defesa que sustenta há alienação do seu cliente, e quanto à intelectualidade de Pierre a defesa enquadrava como sendo uma forma de expressão da loucura do jovem, a ardil hostilidade estava expressa em sua forma de pensar. A corte em meio a esses entraves chega à decisão que Pierre é culpado e determina pena de morte. Perguntas pairam no ar entorno do ocorrido e um questionamento em especial me chama atenção: “qual é então o estado moral desta sociedade que dá origem a pessoas tão depravadas?”. As evidências são preocupantes, o egoísmo em sua nudez objetiva e a falta de valores modificam as relações sociais. Analisando mais cruamente os fatos, Pierre nem foi um monstro como evidenciado na decisão da corte, nem tão pouco um mártir, como era o desejo do réu, réu esse que era um infeliz, um incompreendido, culpado dos seus atos, mas o mesmo não abalizava o potencial de suas ações, a alienação de Pierre estava em um estágio avançado, e poucos ou quase ninguém percebiam isso, Pierre não era um louco comum, sua alienação estava à frente de diagnósticos da sua época. O mais louco de toda a situação é que o jovem Riviere que quis devolver a felicidade ao seu pai, entretanto só aumentou a sua infelicidade e direcionou o seu pai para as ruínas da decadência. Dos seis médicos que analisaram Pierre, três constataram alienação, e outros cinco profissionais que não foram aos altos processuais ao avaliarem o individuo chegaram ao mesmo diagnóstico. O advogado de defesa entra em cena novamente com um pedido de recurso a pena estabelecida, alcançando êxito e revertendo a pena de morte à prisão perpétua. Para cumprir essa pena é estabelecida a prisão de Beaulieu, instituição modelo, sem instrumentos de tortura e de um elevado grau de organização e segurança, todos os presos entram com a ciência que devem permanecer limpos, decentes e laboriosos, exercendo assim essa conduta serão tratados com zelo e doçura pelo sistema prisional. Os presos podem trabalhar na própria instituição, que promove a reabilitação social dos indivíduos privados de liberdade, os encarcerados trabalham e recebem seus salários com todos os direitos assegurados. O sistema prisional em questão possui uma estrutura eficaz que se soma a uma equipe competente que tratam os encarcerados no âmbito físico e mental, regrando os hábitos e instintos desses indivíduos. Nesse espaço de assepsia social, em que os corpos são domados para terem comportamentos dóceis, Pierre passa então a desfrutar de sua prisão perpétua, no entanto o mesmo não se adéqua ao regime prisional, sendo necessário isolá-lo completamente dos demais presos, Pierre então aproveita do isolamento que lhe é imposto para atentar contra sua própria vida, praticando assim o suicídio, que foi justamente a prova material para aqueles que duvidavam de sua sanidade mental, o suicídio trouxe a alienação da qual Pierre Riviere era portador à tona para toda sociedade.


Texto: JOSÉ FERREIRA DE LIMA NETO

Comments


Contate-nos 

Obrigado pelo envio!

Mantenha-se atualizado

Obrigado pelo envio!     Poíesis em Devir

  • Ícone do SoundCloud Branco
  • Ícone do Facebook Branco
  • Ícone do Twitter Branco
  • Ícone do Instagram Branco
  • Ícone do Youtube Branco
© 2021por POÍESIS EM DEVIR. Orgulhosamente criado com Wix.com
bottom of page