Emília Viotti da Costa e a Proclamação da República: crítica e historiografia
- joaop27
- 1 de mar. de 2023
- 6 min de leitura

Em seu texto “A Proclamação da República”, a historiadora Emília Viotti da Costa busca estudar a História da Proclamação da República a partir de uma crítica historiográfica às versões tradicionais em voga da época. Algumas ideias permeavam o cenário historiográfico: afinal, de que era fruto a proclamação? Seria uma revolta militar pelas más condições agravadas durante a Guerra do Paraguai? Uma questão religiosa motivada pela prisão dos bispos do Pará e de Pernambuco? Ou uma consequência dos vícios monárquicos e reação direta da abolição? Como nos mostra Emília, nenhuma delas em particular.
As interpretações tradicionais da historiografia dividiam-se em duas: republicanas e monarquistas. Elas, por sua vez, não davam conta de uma operação, de fato, crítico-historiográfica: baseavam-se apenas em relatos de cronistas e testemunhos como meios de interpretar o ocorrido. A análise era com base na narração factual, e os “grandes homens” da História tomavam lugar de primeira ordem na importância dos fatores analisados. Era no “Metodismo” enquanto aporte historiográfico, portanto, que tanto os Republicanos quanto os Monarquistas baseavam suas versões. Para os primeiros, a proclamação foi uma “consequência natural dos vícios do Império”, e um fato que uma hora ou outra iria chegar. Afinal, para eles, a República era uma aspiração (advinda de um sentimento nacional) que vinha do período colonial, e terminaria por culminar na proclamação de 89. Portanto, ela seria a salvação do Brasil, e os militares, “intérpretes do povo” combateriam os excessos de poder monárquicos, baseados na pessoalidade (alguns nomes dessa Historiografia: Euclides da Cunha; Felício Buarque). Já a interpretação Monarquista afirmava que a proclamação teria sido um golpe militar efetuado por apenas uma pequena parcela do exército: o número de filiados do Partido era escasso, bem como sua participação política. O golpe de 89, portanto, teria sido fruto de um comportamento individualista e mesquinho de setores do exército em conjunto com fazendeiros “ressentidos” pela abolição da escravatura (destacam-se nomes como Oliveira Viana, Visconde do Ouro Preto).
Como dito anteriormente, essas versões não se sustentam. O procedimento historiográfico é falho: o fato pelo fato e a falta de um aporte teórico não explicitam mais que o superficial. Baseando-se na Escola Metódica, e em particular, nos aportes em voga do IHGB (o qual Varnhagen é seu maior nome) elas correspondiam a disputas políticas de narrativas a respeito da História: por parte dos republicanos era necessária a criação de uma imagem forte de República, para se sustentarem no poder. Já os monarquistas precisavam de uma narrativa que instigasse a sua volta – afinal, alguns de seus setores ainda exerciam tentativas de retornar como forma de governo. De acordo com esse método, portanto, os indivíduos (em particular, os grandes homens – brancos - que servem de modelo ideal) são os verdadeiros responsáveis pela mudança histórica.
Por sua vez, munida de uma crítica marxista, a autora mostra ao longo do texto que a proclamação é fruto de um movimento muito maior, que vai além de uma ação individual isolada. Esta não é descartável, mas inserida em uma totalidade: entra em voga a famosa afirmação: “os homens fazem sua própria história, mas não a partir de condições escolhidas por eles”. As estruturas histórico-sociais existem e condicionam a ação e as possibilidades dos sujeitos, que não vivem à parte desta. Portanto, o que explica a ruptura política de 89, longe de ser apenas uma ação militar ou uma evolução natural dos sistemas políticos, é o seu caráter de classe: a forma como as oligarquias paulistas, imbuídas de ideias republicanas, se articulavam politicamente com o exército, ao mesmo tempo em que as antigas elites do Vale do Paraíba perdiam sua força.
Para compor sua tese e desconstruir as ideias tradicionais sobre 1889 a autora vai se basear em seus antecessores: Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, sem prejuízo de, como boa marxista, criticá-los e ir além deles. Para o primeiro, a proclamação é fruto da inadequação de instituições vigentes com o desenvolvimento das elites do país: seriam as transformações profundas, como a decadência das antigas oligarquias ligadas à terra e seu antagonismo com as zonas produtoras em desenvolvimento, que motivariam o processo de Proclamação. Sodré também parte das transformações estruturais que vinham ocorrendo no território nacional: foram elas que impulsionaram as novas classes aderirem uma posição mais “progressista” em busca de mais participação política, interesses que coincidiam com os do Exército. É a partir da análise histórica de ambos que vemos como as ideias Metódicas são frágeis e superficiais: os “grandes homens” saem de cena para entrar uma análise dialética da totalidade social.
Portanto, está armada a base pela qual a historiadora vai desferir suas críticas contra as versões tradicionais da História. Em primeiro lugar, a ideia de que a proclamação veio apenas da questão religiosa (a partir da insatisfação popular pós-prisão dos bispos de Olinda e Pernambuco) é exagerada. Os republicanos estavam divididos no que diz respeito à religião, e o fim da Monarquia não significava, de maneira alguma, força política ou prestígio para o Clero. Na realidade, as novas ideias intensificaram a “separação” entre Igreja e Estado. Já a abolição, o exército e o partido republicano foram fatores significativamente importantes para o processo, mas, como vimos, eles não dão conta de serem, isoladamente, fatores primordiais: a abolição foi um “golpe de misericórdia” em instituições arcaicas que se mal se mantinham. As mudanças na estrutura econômica, a partir da industrialização inglesa e de suas novas demandas no comércio internacional já atingiam em cheio uma elite que se sustentava por meio trabalho escravo e tecnologias já deterioradas. Já o exército e o partido obviamente tiveram papéis significativos no que diz respeito a articulação e a efetuação da proclamação, mas, tiveram suas ideias e forças impulsionadas por contradições mais profundas, as quais condicionaram suas ações e lhes possibilitaram a ação de ruptura.
Qual seria, portanto, a tese da autora? Ela nos mostra que a Proclamação de 1889 foi condicionada por transformações profundas na realidade socioeconômica do país. Se tratava de um conflito entre elites, possibilitado pelas mudanças que vinham ocorrendo nos setores produtivos do Brasil. De um lado tínhamos as antigas elites senhoriais, predominantes no Vale do Paraíba, ainda escravistas e dependentes de importações. O trabalho escravo já estava em crise e se mostrava produtivamente arcaico em comparação as novas formas de trabalho assalariado. Com a abolição, o “golpe de misericórdia” nesses grupos foi desferido: com a baixa produtividade não restava dinheiro para suprir as novas formas de trabalho, e assim, os setores sociais que apoiavam a Monarquia perdiam seu prestígio. De outro lado tínhamos as novas elites, sobretudo no Oeste Paulista, que surgiam das renovações das antigas formas de trabalho: eram favoráveis a imigração de trabalhadores assalariados para os cafezais, ao protecionismo – afinal, queriam aliviar a balança comercial e adquirir independência econômica - e ao fomento do desenvolvimento industrial. Junto a eles tínhamos a pequena burguesia urbana e as classes médias que surgiam e se embebiam de novos valores e ideais político-econômicos opostos aos tradicionais. Assim, os conflitos econômicos entre os dois grupos passavam para os setores políticos, em que as antigas elites arcaicas disputavam espaço e poder com as novas que surgiam. As contradições entre a antiga forma de poder monárquico e as novas necessidades advindas dos mais recentes núcleos produtivos significou a busca por uma ruptura política mais “radical” frente a monarquia: o centralismo político estava corroído, e representava um atraso para a elite cafeeira do Oeste Paulista. Um exemplo é a distribuição de renda irregular para o estado de São Paulo, que, por outro lado, era um dos mais lucrativos. Somado a isso tínhamos pouca representação política. Portanto, era um conflito entre valores e poderes deteriorados frente aos mais novos vindos da urbanização e das mudanças econômicas que chegavam ao país.
Tais questões possibilitaram que as ideias republicanas (e sobretudo federalistas, por conta de São Paulo, por exemplo) ganhassem corpo e adesão. O movimento crescia entre as novas camadas da sociedade, e passou a representar os interesses das elites cafeeiras do Oeste Paulista. A monarquia, já enfraquecida por seus problemas, e com um apoio insustentável de elites em declínio, cedeu. Não existia, porém, adesão popular que levasse a uma ruptura revolucionária com o Império. Portanto, os republicanos encontraram seu apoio em setores mais radicalizados do exército, que nesse momento tinham um projeto em comum: a derrubada do governo. Depois de duas tentativas frustradas (1887 e 1888), entre o dia 11 e o dia 15 de 1889, juntos aos militares, os novos setores republicanos (representados por Rui Barbosa, Benjamin Constant, Aristides Lobo, Quintino Bocaiúva, Glicério e o coronel Solon) planejaram um golpe de estado na casa do Marechal Deodoro da Fonseca. Assim, enquanto o “povo assistia bestializado”, a revolução foi feita pelo alto. A ruptura de 1889 é um marco importante no movimento de longa duração postulado por Florestan Fernandes, iniciado na independência e concluso em 1964: a Revolução Burguesa no Brasil.
Entendamos, porém, que as estruturas históricas tratadas pelo marxismo não são construções teleológicas ou sistemas sociologizantes ahistoricos prontos e impostos. Na realidade são construções históricas, que por sua vez dialeticamente condicionam a realidade social. Se trata de entender a questão da totalidade. Assim, o texto da Emília também é importante porque rompe com versões ultrapassadas do Marxismo brasileiro que impunham esquemas prontos e exportados da Europa para compreender a realidade nacional. O bom materialismo histórico parte da análise de categorias próprias a cada realidade: se trata de analisar o movimento concreto da realidade brasileira, e, de maneira dialética, encontrar as causas profundas de sua razão e dinâmica. Assim, a autora faz parte de uma tradição crítica que busca reformular a compreensão da realidade nacional a partir
de suas próprias contradições e de sua formação sui generis.
COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. . São Paulo: Editorial Grijalbo. . Acesso em: 01 mar. 2023. , 1977
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