A renascença do Harlem está de volta, ainda bem!
- Autor: Jefferson Silva - E-mail: jefferson5684@gmail.com
- 28 de mai. de 2022
- 7 min de leitura
Atualizado: 28 de mai. de 2022
Atualmente está acontecendo um movimento de regresso à ancestralidade negra através da cultura no mundo inteiro. São homens e mulheres, pretos e pretas, das mais variadas culturas mostrando que não podemos ser mais a principal fonte de renda do homem branco europeu, que nos fetichiza e vende as nossas raízes a preço de ouro. É a escravização através da cultura. Enquanto antes o povo preto tinha seus corpos escravizados, agora escravizam as nossas músicas, as nossas danças, a nossa poesia/literatura, as nossas roupas e o nosso cabelo, tudo faz parte de um pacote que vende os costumes cultivados através de séculos desde a África, mas que despreza os corpos que produzem a cultura. A obra de arte negra só não cai em um processo de reprodutibilidade que se despe de sua áurea, como denuncia Walter Benjamin, porque a essência da coisa reside exatamente com quem a criou. É como dizer que o objeto de “fetiche” só existe em conjunto com quem detém os direitos de criação da coisa fetichizada, mesmo não sendo mais o criador o produto comercializado, mas sim a sua criatura.
Entre as décadas de 1910 e 1930 aconteceu nos EUA um movimento que ficou conhecido naquele país como Harlem Renaissance, ou, simplesmente, A Renascença do Harlem. Talvez o maior ato de consolidação e fortalecimento dos movimentos negros no mundo, entendidos enquanto faces de uma mesma luta de reivindicação cultural por parte de um povo que estava cansado de produzir arte exclusivamente para o consumo dos brancos. A Harlem Renaissance traçou uma ponte entre a cultura de rua – produzida principalmente no Harlem daquela época e o continente africano. Os seus artistas e ativistas desprezavam os valores da classe média branca dos EUA, passando a produzir escritos de revolta que se tornaram instrumentos de denúncia da segregação social que os pretos viviam em seu próprio país (que talvez não fosse tão deles assim..). É sempre importante destacar o quanto uma intensa produção cultural injetada nas veias de um povo, pode ser uma forte ferramenta de afirmação de uma consciência sequestrada, ou seja, o negro só terá condições de reivindicar os seus direitos enquanto cidadão se ele conhecer a sua história, as suas raízes, a sua tradição. Estes ativistas que atuaram fortemente dentro do movimento para a sua expansão mundial conseguiram se articular em diversas áreas, como a dançaria e cantora Josephine Baker, conhecida pelos apelidos Vênus Negra, Pérola Negra e Deusa Crioula, talvez seja a primeira grande estrela negra a ganhar notoriedade mundial. Josephine ganhou grande reconhecimento na França, onde foi bastante atuante contra o nazismo e na luta antirracista. Ela foi a primeira pessoa negra e a sexta mulher da história a ser sepultada com honras no Panteão de Paris. Trabalhando pela intelectualidade tivemos o grande sociólogo, historiador e ativista panafricano W.E.B Du Bois, primeiro homem negro da historia dos EUA a obter o título de doutor pela universidade de Harvard. Marcus Garvey, editor, jornalista, empresário e comunicador jamaicano, foi fundador e primeiro presidente da Associação Universal para o Progresso Negro e Liga das Comunicações Africanas. Langston Hughes, poeta, novelista, colunista e dramaturgo norte americano, foi um dos principais disseminadores do pensamento negro em sua época, além de ter escrito poesias incríveis de reivindicação dos direitos dos negros em seu país. James Baldwin, romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta e crítico social estadunidense, aclamado pela crítica mundial, Baldwin é até hoje considerado um dos maiores escritores de língua inglesa de todos os tempos. Louis Armstrong, trompetista e cantor estadunidense, considerado um dos maiores jazzistas de todos os tempos. Count Basie, pianista, compositor e regente, Count assim era chamado por ser considerado membro daquilo que ficou conhecida como “realeza do Jazz”. Duke Ellington, compositor, pianista e líder de orquestra, Duke também era um membro desta “realeza”, sendo ele o Duque, considerado por muitos críticos como o maior compositor musical da história. Ella Fitzgerald, cantora e compositora de jazz, Ella marcou época com sua extensão vocal impressionante que atingia três oitavas, além de ser uma das maiores interpretes de jazz que subiu aos palcos do mundo. Dizzy Gillespie, trompetista, cantor, compositor e líder de orquestra, foi um dos maiores incentivadores do Bebob (subgênero do jazz), além de ter ajudado no desenvolvimento do jazz moderno. Billie Holliday, também conhecida por Lady Day, apelido dado por seu saxofonista e também grande nome do movimento, Lester Young, Billie foi uma das maiores cantoras de jazz da história, dando voz a dor do povo negro de sua época através de suas canções. Jelly Roll Morton, foi um pianista, compositor e orquestrador estadunidense, conhecido como o primeiro teórico do jazz. Enfim, estas pessoas foram os grandes responsáveis por impregnar o conceito de ser negro no próprio negro – agora indivíduos que entendem que podem conquistar sua autonomia através da cultura e consequentemente da reivindicação de direitos sociais – na Europa, no Caribe, nas Antilhas, no restante das américas e em diversas regiões da África colonizada.
Hoje em dia, eu consigo enxergar um movimento bastante parecido de resgate da cultura negra ás suas origens acontecendo também em diversas partes do mundo, inclusive aqui no Brasil. O Jazz acabou se tornando o principal símbolo desta luta. É sabido por todos que o jazz nasce nos EUA enquanto cultura periférica e marginalizada, assim como o Blues, derivados também das Slaves Songs (canções de escravos) e das Sorrow Song (literalmente “canções de dor”, vinculadas no meio religioso das comunidades negras), o jazz não era este conceito erudito que alguns tentam pregar hoje em dia. Assim como qualquer cultura “marginal”, o jazz se apropria de objetos específicos da cultura elitista e os coloca a disposição das classes periféricas, ou seja, enquanto antes as orquestras sinfônicas tocavam apenas para homens e mulheres brancos da burguesia, a partir do jazz aqueles instrumentos tão distantes de nós passaram a fazer um tipo de música que condizia mais com a realidade das famílias negras. É interessante analisar a palavra que dá significado a coisa, Jazz. Não existe consenso acerca do seu significado, particularmente gosto de uma definição dada pelo genial trompetista e intelectual da cultura negra, Wynton Marsalis, que costuma dizer que a melhor maneira de afastar os moralistas da elite de perto da cultura negra é justamente absorvendo para si os adjetivos mais “imorais”, justamente aqueles que essas pessoas não querem ser associadas. Logo, partindo deste ponto de vista, a melhor explicação para o nome “jazz” vem do início do século passado, quando os homens negros costumavam ir aos “honkytonks”, que eram verdadeiros puteiros com musica ao vivo. Estes homens iam tocar e se relacionar com as prostitutas que sempre estavam perfumadas com o aroma de jasmim, daí o nome, jazz inicialmente seria “jess”, abreviação de “jasmine”, posteriormente adaptado para “jazz”, logo, jazz seria a música dos cabarés, algo inaceitável para a classe dominante. Relembremos um nome que citei anteriormente, Jelly Roll Morton, primeiro teórico do jazz e figura bastante interessante de ser analisada. O nome Jelly Roll não foi escolhido por acaso, “jelly roll” é justamente o movimento de vai e vem que o homem faz no sexo, ou seja, as estocadas do ato. Tudo faz parte de um conjunto muito bem pensado que estruturam o conceito, até mesmo as provocações.
Atualmente alguns nomes têm ganhado bastante destaque neste processo de reivindicação do jazz às ruas e ao povo, nomes como a banda inglesa Kokoroko, que talvez seja o maior grupo de jazz do mundo na atualidade, em número e qualidade. Liderado pela genial Sheila Maurice-Gray, Kokoroko faz parte do que ficou conhecido como “jazz londrino”, que não tem nada de londrino, porque é algo completamente fora da caixa colonizadora. Eles misturam jazz e afrobeat, o resultado é um maravilhoso jazz fortemente africano, que nos toca através de nossas raízes. A mistura entre estilos é o que dita o norte do sucesso dessa nova pegada do jazz que está acontecendo no mundo. Essa mistura, principalmente entre jazz, música eletrônica e Hip Hop fica bastante escancarada no grupo The Comet is Coming, liderada pelo genial saxofonista Shabaka Hutchings (chamado, não a toa, de novo John Coltrane), o grupo consegue oscilar de maneira impactante entre a ordinariedade das ruas e a erudição dos grande palcos, é a concretização de um conceito que já nasceu bastante sólido. Também é indispensável citar aquele que para mim é o grande nome da cena atual, o fantástico Robert Glasper. Pianista, compositor e produtor musical, Glasper consegue personificar toda essa mistura que acabei de citar, sendo ele a tradução disso tudo em sucesso. Aqui no brasil a coisa não acontece tão distante da cena mundial, eu diria que as coisas aqui são mais lentas. Dois nomes se destacam nesta empreitada: o primeiro é o carioca Jonathan Ferr, que faz o que hoje se popularizou como “jazz afrofuturista”, uma espécie de constante ferramenta de conexão com a ancestralidade negra. O afrofuturismo é uma proposta de pensar novos mundos possíveis para a população negra pensada pelas próprias pessoas pretas, a partir de uma ótica positiva e completamente saudável. Partindo do mesmo principio que Jonathan, temos um cara que, para mim, é o grande gênio da musica brasileira na atualidade, o recifense Amaro Freitas. Com apenas três álbuns lançados entre 2016 e 2021, Amaro já é uma realidade mundial da música, conquistando os palcos de todo o mundo através da mistura de sons como: maracatu, baião, frevo, ciranda e jazz, tudo isso batido em um liquidificador e transformado em pura arte de primeiríssima qualidade.
Por fim, a grande questão a ser ressaltada é a união do povo negro pelo resgate de sua cultura, através de um processo de retorno à ancestralidade africana, indígena e periférica. Basta de fetichistas brancos roubando descaradamente a nossa cultura para vender a preço de ouro. Que o espírito da renascença do Harlem continue guiando todas essas mentes geniais que citei ao longo do meu texto, seja aqui no Brasil, ou em qualquer parte do mundo. As estruturas terão que ceder. O futuro aponta para o retorno à tradição. O futuro é um homem preto de black power e uma mulher preta de tranças fazendo um som foda pra caralho!

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